:: Alegrete - Rio Grande do Sul - Brasil ::


Está Escrito
José Carlos Queiroga

     Johnny Cash, que eu lembre, foi o único pistoleiro a derrotar Kirk Douglas em duelo. Duelo limpo, estilo Matar ou Morrer, quando Gary Cooper sai à rua empoeirada do bang-bang para enfrentar, sozinho, o bandidão.

     Cash – o original MIB –, de preto, claro, circunspecto, soturno, esperou a iniciativa de Douglas para sacar e, milionésimos de segundo depois, ainda assim, mostrou para os das poltronas (olhamo-nos, eu e o Pascoal, e nos dissemos, “Bá!”, no sentido de, “Viu?!”, concedendo que o cara era realmente bom) que era o mais rápido gatilho do oeste. Do filme, nem sei o nome, mas o propósito da indústria estava claro: faturar em cima da imensa popularidade do cantor country no sul dos EUA (vide Willie Nelson), região “confederada” desde a Guerra da Secessão, resistindo em aceitar a hegemonia ianque. Nashville, de Robert Altman, é o diagnóstico de como pensam, constroem seu imaginário, alicerçam seus templos.

     Como fizera em M.A.S.H. – maroto, sobre os soldados americanos da Coréia – e faria em quase todos os filmes que se seguiram, com destaque para Short-Cuts – baseado em um estupendo Raymond Carver, sobre o vazio caótico da civilização de fins do segundo milênio – e Prèt-a-Porter – sobre o glamour decadente do mundo da moda –, Altman, em Nashville, abre um grande plano geral e mostra as minúcias de um festival de música para onde, parece, confluem “todas” as criaturas, liliputianas no bochincho de intenções e gestos. O Grand Ole Opry é o altar-mor de Nashville, mas a cidade inteira é o “teatro dos acontecimentos”, em cada canto um circo armado, a lembrar – ao menos para nós, alegretenses exibidos –, uns versos de Quintana:

     “...Vão começar as convulsões e arrancos / Sobre os velhos tapetes estendidos... / Olhai o coração que entre gemidos / Giro na ponta dos meus dedos brancos!...”

     E então:

     “’Meu Deus! Mas tu não mudas o programa?’ / Protesta a clara voz das Bem-Amadas. / ‘Que tédio!’, o coro dos Amigos clama. // ‘Mas que vos dar de novo e de imprevisto?’ / Digo... e retorço as pobres mãos cansadas: / ‘Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!’”

     (Os uruguaianenses morrem de inveja. E ainda temos o Faraco!)

     Johnny Cash morreu, o que costuma acontecer com as pessoas em geral – todas as que não são o Paulo Coelho –, variando apenas o como e o quando. No caso de Cash, em 2004, de morte morrida mesmo, e nem tão velho assim que Deus dele precisasse na roda de pôquer cego, mas, de qualquer forma, o convocou, o “homem de preto” era extremamente religioso e, com a iminente chegada do polonês – Ele tudo sabe, até do futuro, que nem existe –, sentiu que a gangorra desequilibraria. Descansemos, pois: se um Deus já é bom trino, prevenido, vale por toda as pedras frias do Vaticano.

     Seu último disco, “The man comes around”, traz um recorte do perfil marcante sobre fundo – adivinhem? – negro e uma série de músicas próprias e alheias – como “The Bridge Over Trouble Water”, de Paul Simon, ou “In to My Life”, de Lennon e MacCartney – às quais, com a bela voz de baixo rouco, acrescenta o cansaço de ter subido uma montanha de seixos (e com ela nas costas!), alguns rolantes – meio Sísifo, como todos, incluso o bocudo da língua grande –, outros ainda ali, como balas pétreas, Demóstenes tã-tã, o truque desmascarado em praça pública... Nessas horas, não adianta procurar, nunca tem uma lixeira por perto onde cuspir disfarçadamente a gafe. Nessas horas, resta-nos engolir o chiclete e correr o seriíssimo risco de colar as tripas. Pois as pedras, acreditem, guturais engasgos, antes ruídos do que a limpa elocução esperável de um Bing Crosby country, soam melhor em nossos igualmente cansados ouvidos. “Melhor”, explico: o som mais vívido, e não por vocálico, em “aa”, janelas abertas, dia de sol, primavera, mas pelos tropeços consonantais, os erres mais que os esses, noite invernal, caverna. “Melhor”, assim, o som, vivido, recolhimento íntimo de apagar a luz, jornada finda, resmungar pensamentos no escuro, solidão infinita.

     John Mills foi outro que morreu – também não era Paulo Coelho, embora Sir –, o magnífico bobo (Oscar de coadjuvante em 71) de A Filha de Ryan, por sua vez, um dos tantos magníficos David Lean (Lawrence da Arábia, Doutor Jivago, A Ponte do Rio Kwai, etc.), aos 97 anos. No mesmo obituário leio compungido a nota do passamento de Ruth Hussey, namorada de James Stewart (de Janela Indiscreta, O Homem que Matou o Facínora... lembram?) em uma comédia de 1940, quatro anos mais jovem que Mills (“Bem mais jovem...”, como diz a mãe, defendendo-se quando brinco que tem “de 70 pra fora”, e tem menos, um ou dois). Impressionante, mas está todo mundo morrendo, só na página da Zero Hora são sete com foto e quatro sem, o que soma 11, número da sorte, “tenho que jogar no bicho”, penso, e penso melhor, “não, bicho é contravenção, certamente coisa do demônio”.

     Não sei se perceberam, mas o último parágrafo é ansioso, taquicárdico, porque, quando escrevi “solidão infinita” no anterior e iniciei o seguinte com John Mills, de A Filha de Ryan, que assisti embebecido no Cine Glória, aos 13 (mesma idade das adolescentes problemáticas de Aos Treze e de meu neto mais velho, Eduardo), começaram as palpitações. Estou com 47, idade de meu pai quando do primeiro infarto, dez anos antes do derradeiro. Puxa, Drummond, “todos vêm tarde sempre” (“todos”, nós, eu com o socorro), e, Carlos, tocaio, é isso, “a vida que nos resta, pausa descompassada...” O pai, Drummond, Quintana, Cash, Mills, Stewart, Cooper e até a Dada, minha babá, que pediu pra Comadre, “Não me deixa morrer aqui”, e a Comadre não queria, fez tudo pra que não acontecesse, mas no outro dia, na Santa Casa, morreu também a Dada, porque é aqui que se morre, é na Terra que se vive e que se morre.

     O Coelho não, evidentemente, mas isso é “de somenos”, como dizia um vetusto professor de Direito. O importante é que algumas pessoas, para nós, não morrem nunca. Tenho certeza disso quando visito Porto Alegre. Certeza e conforto, porque lá, em todos os muros, está escrito que Elvis NÃO MORREU! E eu acredito, só me resta acreditar, até porque está escrito.

 


Luz Negra
José Carlos Queiroga

     Quando tinha alunos, quase todos adolesciam, palavra que vem do latim e – os consolava, mais do que advertia – significa “sentir dor”.

     Eu, Christiane F., Treze Anos, Drogada e Prostituída, de 1981, foi, provavelmente, o primeiro filme a abordar o tema fixando uma idade, os 13, como a fase crítica do grande rito de passagem de nossas vidas

     (salvo a travessia a nado

     do Ibirapuitã cheio,

     em livre estilo “copinho”,

     no Porto dos Aguateiros),

     13, bem menos do que James Dean tinha em Juventude Transviada e muito mais do que os oito do poema que Casimiro escreveu aos vinte, vinte e poucos (ou não daria tempo, só psicografado), saudoso das “tardes fagueiras, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”. Kids, Confissões de Adolescente e Vidas Sem Rumo são outros filmes que me ocorrem, agora que vi um cujo título é já a confirmação de um paradigma: Aos treze (Thirteen, de Catherine Hardwicke, com roteiro dela e de Nikki Reed, que conta suas experiências pessoais e aparece como Evie, a amiga dela mesma, na película, Tracy, vivida por uma lolita de cinema, Evan Rachel Wood).

     Lembro de um cartum entrevisto em alguma “baia” nos anos 70 (imprensa nanica, pasquins versus, nada desse conformismo adesista de hoje, porque era preciso ser contra, e sempre é, não nos acanhemos!): dois no balcão, um deles, todo presumido, cheio de “balaca” explicando ao outro que sua roupa “incrementada” – calça boca de sino, com nesga desbotada, jaqueta de brim, mini-blusa colante, sapato de plataforma – era o que o fazia singular, diferente, “sacou?”, e não apenas mais um na meleca da sociedade de consumo. O interlocutor olha por sobre o ombro do jovem para outros jovens, eles também diferentes, todos absolutamente iguais. Moral da história?

     A crítica dividiu-se quanto às qualidades do trabalho de Hardwicke, alguns entendendo que mostrar auto-mutilação, sexo promíscuo, uso e tráfico de drogas é apelação pura. Mais um filminho pra chocar pais e mestres e, assim, emplacar semanas nas melhores salas e ser sucesso de locações, (a) distraindo a “tchurma” em alguma tarde vazia no shopping, (b) reunindo a família, persignada frente ao eletrodoméstico – e nem é novela! –, (c) amontoando colegiais no exíguo salão, em mais uma tentativa irritante de contrariar Caetano Veloso, que além de rebolar “Chiquita Bacana” e cantar magnificamente “FiiiiiiinaaaEs-tampa...”, escreveu: “a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol”. (Deste caminhar, uma cena destaca-se: as amigas, braços dados, irrompem, do sol, no tubo do corredor da escola e vêm contra a tela, confiantes, felizes, “poderosas”, ao som marcado de uma dessas triunfais de passarela. Desforra da câmara opressora, que as persegue, denuncia e encurrala o tempo todo, cerceando-lhes mesmo o que é próprio da idade, como o gestual destemperado da rebeldia.)

     Um ewaldesouza da Rede, Paulo Pinheiro, chegou a dizer que o filme passa a idéia de que o sonho das adolescentes americanas é transformarem-se em vadias quando crescerem. (E eu, cá comigo, lembro de Julia Roberts em Uma Linda Mulher, prostituta que se dá tão bem que conquista um ricaço WASP e ainda rende uma das maiores bilheterias da história, transformando-se na pretty woman oficial de todos nós, pelo menos até o – aleluia! – advento de Nicole. E ela também morava em Los Angeles, borderline de Oliú.)

     Os jovens com quem falei têm opinião oposta; sem nenhuma exceção, gostaram de Aos treze. Uma menina de 15, Bárbara Maia, que encontro na Internet, bem impressionada, diz que “não é um filme que te dê muitas lições, mas mostra que se a sua vida está ruim, você precisa fazer alguma coisa para mudar”, classificando-o como próprio “para se ver com a mãe, com o pai e com os amigos”, pois é bom assisti-lo com quem “se importa com você”. Bárbara destaca a importância do diálogo e da postura compreensiva da mãe “riponga” (atuação premiada de Holly Hunter), pós-ripismo este torpedeado por Paulo Pinheiro: Mel “educa sua filha na mais completa liberdade de espírito, de acordo com todos os manuais da moderna psicologia. O resultado, como não poderia deixar de ser, é um desastre”.

     Temos então que, para o adulto Paulo, a moderna psicologia é um desastre, ao contrário do que pensa a jovem Bárbara, que, divergindo do caráter pedagógico do filme, outrossim, concorda com alguma voz do texto (eu mesmo? Tu, caro leitor? Ele, o embuçado?) de que assisti-lo é coisa de se fazer junto com quem se gosta. (Como o sexo, eu acrescentaria, e todos os nossos mais íntimos transbordamentos.) O que vale mesmo é a troca de idéias. Pensar, tipo assim, funciona como um daqueles emaranhados de pistas de Los Angeles: oferecem muitas opções, talvez alguma saída. Moral? No Reino de Oz. A menina do Kansas, porém, morreu de overdose, levando o mapa consigo.

     Quando eu tinha 13 anos, tudo era “feio”, tudo era meio proibido. Nosso rito de passagem dava-se mais tarde (cinco minutos mais tarde, como diria o Pirata). Meu neto mais velho, de exatos 13, torna-se homem de repente. Observo nele o que fui num dia qualquer como este, vêm-me as palavras de Steinberg sobre a arte moderna, que “sempre nasce com ansiedade”, e penso: uma vez ouvi, transido, “The Dark Side Of The Moon” sob luz negra; Pink Floyd, Cuba Libre, luz negra e uma confusão de sonhos dourados na cabeça.

     Erico Veríssimo dizia que, no mínimo, a tarefa de um escritor, “numa época de atrocidades, é acender sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade”. Se não tivermos lâmpada, “risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos”. Tarefa de um escritor, do Cabo, meu amigo engenheiro-eletricista, e de todos nós, com mais de 21, incentivando aos que adolescem com nossa teimosia, nossa solidariedade explícita, nossa presença “esquisita”. Porque este rito de passagem, aos 13, é “sinistro”. Não como,

     claro, aquele outro rito

     de vazar o rio a nado

     no Porto dos Aguateiros,

     Ibirapuitã cheio,

     mas é sempre um rio a atravessar, sem ponte e turbulento. Por mais que nos pareça a coisa toda um exagero (da distância segura que impõe o tempo), é água, e das piores: inevitável permeio.


Muda geme?
José Carlos Queiroga

     Nestes calorões fora de época – parece que o tempo entra na menopausa, ô idadezinha perigosa! –, nada melhor do que locar um filme sem pé nem cabeça para assistir à noite, quando a TV aberta passa ratinhos, leões, uns enjaulados e a fauna completa das novelas. Sem pé nem cabeça e politicamente correto, ainda ontonte foi o dia das mulheres e elas, quando não é menopausa, é TPM, pior, mensal, ô generosinho do cão! Um filme com um afro-descendente como protagonista, Anthonhy Mackie, e um bando assim tipo Harrelson, Barkin, Ossie, Dennehy, Brown, Turturro fazendo figuração.

     Mackie é Jack, JJ, que resolve denunciar as falcatruas da companhia onde trabalha e é imediatamente despedido, tem sua conta no banco – com agências no Brasil, brrrr! – sustada, os cartões de crédito, tudo, cai daqueles espigões envidraçados e se espatifa contra a dura vida. Catando estihaços, ainda grogue, aparece-lhe a ex-mulher, Fátima (Kerry Washington) com uma outra moça, Alex (Dania Ramírez), ambas muito bem parecidas, a primeira, afrodescendente, a outra, latina. JJ, que está chateado, em cacos, flecha a mulher com suas farpas:

     – Quem é ela? Seu novo brinquedo?

     – Jack, sinceramente... – e ele:

     – Senhorita Boazuda Brasileira, você é o sabor deste mês? – Alex:

     – Ei, cabrón... Não sou brasileira, sou dominicana.

     Ofendida, a dominicana, porque brasileira, bá!... Agora mesmo, a Secco e a trupe dela, um punhado de pobretões platinados, de olhos azuis, estão acantonados no México, prontos para forçar a fronteira sul do tio sam, tomara que o bush não invente outro Álamo e declare guerra a todo o Continente. O texano é boina-verde que te digo!, wayne barbaridade! Primeiro, Cuba, um tornado, só que de cima pra baixo, a Condolência assessorando, "Diz-que pela Baía dos Porcos..." Um horror, essa afrodescendente.

     Mas a dominicana, hein?! A Secco, boazuda e saborosa daquele jeito, como bem disse JJ... "O preconceito é a coisa mais horrível deste mundo", sempre falava o adolfo, amuado, quando gozavam do bigode de Carlitos dele.

     Bueno. Fátima e Alex queriam ter filhos, mas, não se sabe bem a causa – a ciência avança mas não é o Senna, pra quê?, viram no que deu?!... –, o fato é que, infelizmente, como acontece com muitos casais do mesmo sexo, tinham um problemão, faziam, faziam e não engravidavam. Coisa séria! E faziam, faziam, nada!... De modo que resolveram apelar para JJ, uma das duas – céus! – deveria ser estéril... Deus!...

     Don Bagayo y Balurdo, grande conhecedor do assunto, PhD dos CDF, tem uma teoria. Diz o professor que o Supracitado, naquele tempo, à moda miguelão, Coitado, escapou-Lhe a cherenguinha e não é que deixou Eva sem piola?!... Adão, prevenido, com a sua bem escondida atrás da folha da parreira. Porque a mulher cobiçava, desde o início ambicioneiras que são, sempre de olho no que é dos outros.

     – O problema da piola é parte de um outro muito maior, que é o da escassez de gêneros... – Claro, pensamos, o paraíso tinha lá suas frutijas, greipifruitis, mas como saber se não eram desses mio-mios bonitos que até cavalo matam? Adão, mui cavalheiro, até provava, mas, e se desse o azar de ser tóxico?... E nós, no éter, sem no que encarnar? Tá louco?!...

     – Escassez de gêneros. Refiro-me ao duo primacial, quando, bem o sabemos, não há ortodoxia no tocante a piolas, e a ciência está a demonstrar sobejamente esta verdade. Algumas são digitais, outras linguais, quando não sub-linguais, e até mesmo de látex duro, vaselinado, sem falar do leque das umbelíferas e das euforbiáceas, com destaque para o pão-de-pobre, tubérculo de polpa firme muito apreciado inclusive pelos ricos... Enfim, não vamos longe, em qualquer bolicho de esquina, quem não tem de sua, de nascença, encontra piola que lhe sirva justo. Neste particular, vige a lei da oferta e da procura. Mesmo onde o canibalismo é selvagem. E agora, se me dão licença...

     Don Bagayo é sábio. Vai dar a sesteada de costume, engraxar a piola com a evitita que ora está a servi-lo de um tudo.

     Mas, voltando a Fátima e Alex, problemão! Foi, foi que combinaram: a que não engravidasse, ficaria feliz por ambas, afinal, de qualquer forma, seriam os pais do bebê, Jack apenas doaria o sêmen, ainda que tivesse que usar aquele apêndice nojento que as moças desprezavam, e nelas!... Desempregado e com um nível de vida bem uosp pra sustentar, o afrodescendente deu uma guinada no tempo e estabeleceu-se como escravo núbio, pagando percentagem aceitável a Fátima, que agenciava seus serviços para as muitas de Lesbos vindas, ô ilhazinha populosa!... E ninguém diria, de Lesbos...

     JJ resolve todos os problemas, inclusive o de Simona (Mônica Bellucci), apelido carinhoso de Mafia, filha de Ângelo Bonasera (John Turturro, o anjo da boa-noite, que todos temos, assim dizem, sempre em guarda), um godfather corleoníssimo – para Jack, em sua casa, "Está seguro aqui, não é como no cinema" –, certamente a melhor coisa deste filme ruim de Spike Lee. Denuncista – da antiética empresarial, da hipocrisia racial, da corrupção sistêmica, até da carolice de Salen que grassa por lá, "Deus abençoe a América!" –, denuncista, sim, mas ruim.

     No entanto, só de ver a Mônica Bellucci... E a Kerry e a Dania, claro... Mas, a Mônica Bellucci... Quisera tê-la conhecido antes, no tempo das matinês, quando restava-nos sonhar não com o grandioso do belo verdadeiro, mas com a elefantíase de beiços, bundas e peitos, lollobrígidas e sophias lambuzadas de macarrão, goeludas, espalhafatosas... Mônica, não. Um colosso (de Rhodes, mas venusiana)! E quieta. Quieta bem como tem que ser uma mulher que a gente queira pra sempre ao lado. Melhor, impossível! Só se for muda... Mas... Muda geme?...



Ocá
José Carlos Queiroga

     O Neil Diamond (podem rir, jovens desaforados pós-jurássicos) era um cantor romântico que muito embalou meus amores na juventude. Nunca soube muito bem o que estava ouvindo, até porque prestava atenção em outra coisa, mas a melodia sempre enchia de “mel o dia” (também não gostaram do trocadilho, jovens feitos de chips?), ao menos o meu dia – e noites.
     Pois o Neil Diamond cantava uma música que muito me emocionava, “Solitary Man”, pela mensagem que a letra, inspiradíssima, passava e da qual eu compreendia apenas o significado do título, mas era capaz de traduzir inteira, com os “ou-ous”, os “lá-lás”, “xubi-dubis” e, sem querer exibir-me, inclusive com os “lows” (“loves”, amores para quem não é do ramo) e os “beibis” (que sempre me sugeriram um quê de pedofilia e vertigens de “bonecas” de baby-doll; de “pequenas” sapientíssimas).
     “Solitary Man” fala de um homem solitário – e se não fala, o Neil Diamond gozou com a minha cara esse tempo todo – , mas, tenho para mim, que diz mesmo da solidão dos homens. A associação com pedofilia linhas acima, não por acaso ocorreu-me e agora pesquei o troço: Lolita. Já viram alguém mais solitário do que o professor de minha-idade que apaixona-se desabridamente por aquela bonequinha de rubro biscuit (estão rindo de novo, jovens de matéria plástica, inquebráveis, práticos e do 1,99?).
     Estou entre os que professam a tese filosófica, geralmente proferida entre o gole e o arroto (ou vômito), de que, por mais que o companheiro de mesa ronque, estamos sós no mundo; somos homens solitários a debatermo-nos neste vazio existencial de que só nós sofremos nossa ressaca, só nós sentimos nossa dor, só nós morremos nossa morte.
     Ex-professor como o quarentão de Lolita, tive muitos alunos e alunas que – pasmem! – não riam de nós, solitários lá na frente, ganhando a miséria de sempre e persistindo na audácia de tentar ensinar-lhes algo. Alguns alunos e alunas sabiam que não sabiam tudo, e que tampouco nós o sabíamos, solitários contra o quadro negro, a pedra fria. Falei com dois deles esta semana: Laerte Dorneles e Fernando Grbac Perez. O primeiro mora em Novo Hamburgo; o segundo, depois de temporada em Uruguaiana, acho que anda por Aldebarã. Ambos solitários por natureza, sofrendo ainda a solidão do exílio.
     Esses dois jovens, com grande potencial para a produção de textos – talvez futuros literatos – também não conhecem o Neil Diamond, a exemplo dos risonhos de sua idade, mas creio que manjam muito de inglês. A cada vez que me telefonam, e o fazem com freqüência hebdomadária (ah, ficaram quietos?! corram ao dicionário, hienas de butique!), reforçam um outro sentido para a música emocionante do Diamond: garantem-me que fala dos homens “solidários”, aqueles que, solitários, ligam para mim.
     Continuem procurando-me, ocá?!


Rolha de poço

José Carlos Queiroga

Esses dia vi um filme inglês, dirigido por Mike Leigh, com Timothy Spall vivendo um gordo pai de família suburbana, motorista de táxi sempre correndo atrás da máquina – e nunca a alcançando, senão, qual a lógica? –, casado com uma caixa de supermercado, muito exigente com os de casa, fria com o marido, pais ambos de uma gorducha faxineira de uma clínica e de um gordachão que não faz nada, a não ser esparramar-se como um peixe boi – e eles estão em extinção, Greenpeace urgente! – no sofá, frente à televisão, ou brigar com os – sempre menores – vizinhos de condomínio.
Os vizinhos de condomínio. A dentuça colega de trabalho, humor inabalável, mãe de uma jovem garçonete que relaciona-se com um marginal – tem até cicatriz na cara! – e que dele engravida. A adolescente do chiclé, que diverte-se em provocar sexualmente o retardado do lugar e o namorado da garçonete, filha de uma alcoólatra de cair em bar e de um também motorista de táxi que está sempre batendo o carro, e que prefere mesmo ficar em casa, bebendo com a mulher. Os prédios são cinzas, precocemente decrépitos – pelo mau uso, pela indigência dos componentes frente ao tempo –, como os moradores, recortes da infelicidade que grassa nas metrópoles e parece não ter cura.
Aí o gordo Timothy Spall pega uma passageira dessas empinadas, que, com sua conversa doutro mundo, cutuca fundo a barriga dele, bem no chacra do umbigo, a cócega machucando, unhuda. Deixa-a em um endereço desses ingleses, pontualmente ingleses, de fraque e cartola, ao contrário do condomínio, universal, unívoco como a pobreza. Deixa-a e abilola. Desliga o rádio, o celular, a porção da cabeça que pensa o trânsito diário, as obrigações profissionais, as familiares, e pega uma rodovia que vai dar no mar. O gordo senta nos seixos da praia e fica – as ondas também não ligam a mínima, balofo!
Enquanto isso, o filho, envolvido em mais uma briga, sente que, espremido entre as camadas graxas de seu corpanzil de elefante hooligan, tem um músculo. Sedentário, preguiçoso mesmo, mas, pressionado pela banha do porco que o aprisiona, começa a espernear, falta-lhe oxigênio e, sem oxigênio, nem hooligan agüenta, basta ver a tragédia daquele estádio anos atrás. Cambaleia. A adolescente masca seu chiclé, mas tem os olhos semi-livres sob a franja, de modo que vê aquilo e – qualquer um sabe o truque de esconder a goma entre a arcada e a mucosa, pra não engolir e colar as tripas – consegue pedir para a mãe chamar socorro. A bem humorada futura avó é outra que vê. A bêbada não parece que consiga fazer algo, então a filha sobe, “correr, ligar, ligar”, deixando o sapão-cururu nos braços da dentuça. Chega ao apartamento e a mãe afaga o pai no sofá, ambos vocacionados para a toxicopatologia, de jeito nenhum para a telefonia ou a emergência. Xinga-os.
A mãe do rolha de poço e a irmã vão para o hospital, onde ele já está, bem como gosta, atirado numa cama enorme, não precisa nem fazer força pra chupar canudinho, a comida entra diretamente na veia, e, de repente, todos são simpáticos com ele. Se soubesse, bem que poderia ter precipitado os acontecimentos, brigava todo dia! Mas faltava o pai, que, diferentemente da mãe, não enchia o saco, não ficava pegando do seu pé como quem pega – com as duas mãos – o rabo do peixe-boi. Onde andaria o pai?
Não digo.


Divulgação MGM                                                          Divulgação MGM


Digo

Acima, o gordinho Spall e sua família, à mesa. Após o incidente com o guri, o ator conversa com a mulher, bota os pingos nos “is” quanto aos sentimentos que nutre por ela, pelos filhos – e todos sabemos que os “is” já vêm com pingo no teclado, a coisa já ali, latente, como os pingos da chuva evaporando pro céu, e a gente nem nota e vive a chover no molhado, isso é que é, assim são as coisas, tudo em vão, não fossem as lavouras, sempre tão necessitadas, os lavoureiros e suas camionetas importadas, a Bolsa de Chicago... –, desabafa, chora, cena tocante, linda, verdadeira. Tão linda que até gostamos que – neste específico instante muito particular – as mulheres não sejam mudas, como as rosas, pra bonito apenas.
Vale locar. Precisamos, às vezes, lubrificar os olhos, porque somos feitos de areia, da mais farelenta. E os olhos, então, são como as terras mal usadas, viram deserto. Ninguém queira pro pior inimigo uma erosão de córnea.

 

 


Perdido na tradução

José Carlos Queiroga

Minha porção mulher sempre foi preponderante. A mãe, a babá, as duas irmãs, as duas filhas... Até minha mulher é mulher.
Podem falar, não ligo.
Acabei de assistir Encontros e Desencontros (Lost in Translation), escrito e dirigido por Sofia Coppola, pimpolha do Francis Ford, aquela feiosa que, se bem lembro, deveria ser a Cinderela em um dos Chefões, mas acabou no papel de carruagem, a roupa e seus traços de roça compondo uma original caracterização de abóbora. Pois a guria, dirigindo, de batata não tem nada. Já em As Virgens Suicidas mostrou toda uma competência artesanal comparável à molecular de, por exemplo, Sharon Stone, quando cruzou as pernas naquele outro filme do tempo em que o Michael Douglas vivia dizendo que era viciado em sexo só para faturar como galã (antes do Russel Crowe fingir-se gladiador, o Bush, inocente, e a Madonna, atriz). Pergunto: na-na-na-não tem Lojas Marisa nos EUA, Lombardi? E no Japão, Lombardi? He-hein, Lombardi?
A resposta é não, Sílvio, mas bem que poderia ter o Baú da Felicidade.
A calcinha de Charlotte, rosa transparente, é a primeira tomada de Encontros..., ela dentro, a inteiriça bunda dando ó para a câmera. Desde então (Charlotte mexe-se, sempre presa na casta peça, baratinha nas Marisa) firmei convicção de que o filme é sensacional, nada menos do que um Cult (dêem tempo ao tempo, ó impacientes!). Porque têm coisas que a gente, num lampejo, percebe toda, e a bunda, em uma mulher, é uma dessas decisivas coisas (ver a postura de Napoleão em Waterloo, foi-se a guerra), não só pela localização central no corpo (a virtude está no meio), como pelo necessário equilíbrio que nele determina, brotando dali acima a curva da cinturinha e logo os seios, florais, enquanto que, dali abaixo, num frenesi radicular, as pernas, cujas coxas já lá estavam na primeira imagem, a informar ao grande público que a mulher é perfeita, calma, nada lhe falta, fez o teste do pezinho e tudo, mas, capciosamente, cortando o resto.
Só depois fomos verificar que Charlotte gosta de abraçar os joelhos (naquela posição dita “fetal”, a pudicícia do falante trocando causa e conseqüência, mancomunada com Sofia, evidentemente, para que prestemos atenção às lágrimas, não se trata de um filme erótico, apesar da presença de Bill Murray, e rir nem sempre é a reação adequada, como se sabe, A paixão de Cristo o comprova, Jesus nunca riu)... Charlotte gosta de abraçar os joelhos e ficar olhando longe, sempre só de calcinha, com uns beiços de deixar qualquer batom assanhado. Mesmo então, e nunca em todo o filme, aparece de cabo a rabo. Há filósofos a sustentar que tal não acontece porque a moça não sabe bem o que é ou vai ser, segundo suas próprias palavras, perdida em um mundo que não entende, a tiracolo de um marido que não conhece bem, judiaria, persona incompleta, a contradizer a inteiriça e supracitada bunda, o que só dá ao filme maior dimensão artística (aquele negócio de forma e fundo) e antropológica, lembrando que o termo deve vir do grego, como Platão e Aristóteles.
Interessante que Bill Murray, Bob Harris, ator que está no Japão para filmar um comercial de uísque, foi indicado para o Oscar e ganhou o Globo de Ouro, enquanto que Scarlett Johansson, a Charlotte, que fez filosofia em Yale, passou despercebida.
Como não a notaram?
Eu só tive olhos para ela o tempo todo!
Um amigo me consola: “Claro, ele é ator e o Oscar ainda não instituiu a categoria Filósofa!”
Tem razão, lógico, mas eu não quero saber. Só por que o chato, que sempre posa de engraçadinho blasé, conteve-se um pouco mais? Só por que, na solidão do hotel, ao telefone com a esposa, ela pergunta, “Preciso me preocupar com você?”, e ele responde, “Só se você quiser”... por isso?
Esse Globo de Ouro não é de 18 quilates, talvez o penhor da Caixa nem o aceite e, eu vi, ele estava sentado em uma das primeiras filas do show do Oscar, todo pimpão, certo de que também ia levar a estatueta banhada, como se o Sean Penn não existisse, e traumatizado... Prepotente!... Aliás, o blasé não passa disso mesmo, um prepotente; desdenha tudo à sua volta, como se o mundo inteiro girasse à sua volta (daqui a pouco, está tonto e cai, o Fidel não quebrou o joelho em oito pedaços?). Por quase isso, Galileu virou churrasco. E, quanto ao telefonema do Bob, não esqueçamos o de Charlotte para a mãe (ou alguém equivalente), que nem percebe que a guria está aos prantos, afinal, uma multidão nas ruas e tudo japonês, a mãe, mais preocupada com os pequenos, o trivial dia-a-dia. E as grandes questões da existência? Assim, como é que a gente pode ser feliz em Tóquio... e sem o Baú?
Mas o filme é bom, sem dúvida. Meu amigo Laerte diz que, entre outras coisas, “porque não se rende a soluções fáceis, eles poderiam ter ido para a cama”. De fato, e não que Bob não quisesse, tirou os atrasados com a crooner ruiva. O sentimento que foram sedimentando não comportava “troca de fluidos”, diz ele. Aí já não sei, mas se eu fosse o Bill Murray, faria como o Humphrey Bogart e trazia ela no muque, lembremos do sucesso de Rett Butler com outra Scarlett, a O’Hara, no muque e de bigodinho. E chegamos ao ponto: o Bill não é uma ator, é um comediante, e blasé, ninguém espera dele que tome atitudes, mas, sim, que faça caretas. O máximo que consegue é mandar parar o táxi (mas isso, qualquer um, os motoristas estão sempre às ordens, “Toca para o aeroporto”, e eles não nos deixam na rodoviária... O problema é: e quem tem medo de avião?). Pára o táxi e sai atrás dela para um último abraço, comovidos ambos, sussurra algo em seu ouvido, ela sorri, “OK”, pronto.
O que disse ele?
Tem um conto do Tchekov, os jovens descem a montanha naqueles carrinhos de rolimã para neve, o deslocamento do vento, os ruídos gelados, ele sopra baixinho, “Te amo”, ela pensa que ouve algo, mas não tem certeza, nunca vai saber.
Mas o Bill, ele deve ter explicado que é um americano típico, daqueles assim “à primeira vista”, caricato como os japoneses do filme, e tinha que voltar para o mundo, the world, compreende?, America. Ainda bem que tudo acabou bem; é no andar da carruagem que as abóboras se ajeitam. E quem quer finais felizes? A vida é que não pode parar! Se a câmera seguisse Scarlett, quebrar-se-ia o encanto; ela certamente estaria tendo conversas adultas, em inglês, com seus amigos, japoneses de verdade, talvez até trocando fluidos, uma princesa daquelas, talvez “em posição fetal”, que é como tudo começa e termina, aleluia!
Da Concha

Todo mundo já tinha visto Invasões Bárbaras e me contavam sua – geralmente boa, apaixonada – impressão sobre o filme; só eu parecia um desses bacudos do Alegrete, alheio ao que vai pela galáxia, ignorante das últimas fotos de Saturno. Como entendi que minha opinião plasmar-se-ia mais a contento com minha pessoa – assim, em nível de mim mesmo, compreendem? – assistindo o sucesso do canadense Dennys Arcand, e como as locadoras de Alegrete já o tinham, resolvi pagar para ver. Conclusão: vale os quatro pilas. Cinco, seis, sete? Não sei. Com isso se compra um Concha y Toro em Libres. Em outro filme, cujo comentário podem ler no texto que vem logo abaixo deste, Revelações, a irmã do professor diz para o escritor amigo: “As pessoas, hoje, estão mais burras. E com mais opinião!” Bingo!, exclamaria um que fechasse sua cartela. É impressionante: opinam sobre tudo sem o menor pudor. É o Edmundo, o Romário, a Xuxa, o Tiririca... Bueno, então...
Não vou contar o filme, seria chover no molhado, também porque penso que “chover no molhado” seja uma boa expressão para que bem nos coloquemos frente à obra. O professor Rémy, com câncer terminal, diz: “Não consigo me resignar”; “Eu terei desaparecido para sempre, e tão despreparado como quando nasci. Não achei um sentido para as coisas”; “Fracassei em tudo”. Lembro-me imediatamente de Blade Runner, a cena da luta no alto do prédio, o replicante (Rutger Hauer), tendo dominado o caçador de andróides (Harrison Ford, Indiana Jones do futuro), chorando, olha para o céu chuvoso (Deus?) e pergunta se sua vida era isso mesmo, nenhum sentido, escoando-se como “lágrimas na chuva” (de onde Sérgio Faraco tirou o título de seu belo livro). Afora Brás Cubas, que não teve filhos para não perpetuar sua miséria, todos gostaríamos de deixar algo de nós no mundo, mas, claro, que não fossem seqüelas (ando irritado com essa história de “histórico familiar” que os médicos estão sempre brandindo contra mim, coronárias, próstata... Qualquer dia, não sei...). Enfim, tudo se resume a Borges: “Eu, que tantos homens fui, não fui nunca / Aquele em cujo abraço Matilde Urbach desfalecia.” Fracasso total.
O professor pegou a geração do ativismo político, o fim dos anos 60, começo dos 70, a luta pelos direitos humanos, pelo socialismo, por todos os ismos que, junto aos amigos, diante do fogo primacial, desdenha, auto-ridicularizando-se. Por que o fazem, os velhos? A menina viciada, que fornece heroína para aplacar as dores crescentes do moribundo, mata a cobra: “Não queres deixar é tua vida passada, não a atual”. Quem não gostaria de ser jovem sempre? Puxa! Eu, de bom grado, voltaria a cagar nas calças, se isso, na minha idade, não fosse apenas sinal de senilidade e de pouco dinheiro pra comprar fraldão. Os amigos – arrebanhados pelo filho, um bem sucedido capitalista, que, inclusive, paga antigos alunos para que visitem o pai, demonstrando-lhe um falso sentimento de gratidão, de respeito –, que não têm câncer na cabeça, comportam-se da mesma maneira, estúpida, diga-se, obtusa, coisa muito feia para intelectuais. O assunto predileto era de como comiam e/ou davam, tipicamente geriátrico, nada a ver especificamente com a geração “paz e amor”, jovens que pensavam em mudar o mundo. A julgar pelos velhos patéticos em cena, eles apenas pensavam que pensavam em mudar o mundo e, por isso, mudaram foi coisa nenhuma. Rémy submete-se aos métodos – ao dinheiro, que tudo compra – do filho, cujas idéias, qual cogumelo na merda, germinaram sobre os escombros da geração que está com os pés na cova, ou já na cova, que onde cabem os pés, costuma caber o chapéu inteiro.
Ah, o sistema de saúde... Um outro filme recente guarda muita similitude com o canadense: Adeus Lênin!, de Wolfgang Becker. Nele, a mãe de Alex, na Berlim oriental, sofre um enfarte e vai para o hospital. Fica em um quarto individual e, a julgar pelos tubos, não contei, e os aparelhos com luzinhas, tem um atendimento digno, vip perto do de Rémy (antes da chegada do filho, que suborna os sindicalistas e também consegue uma suíte para seu papi). Propaganda vermelha? Quem duvida... o insidioso vermelho tá no sangue, e o Trabant era – manobra diversionista! – azul celeste. Mas, como dizia, a mãe de Alex... ela perde o espetáculo da derrubada do muro, o Bial lá e tudo. Como é uma socialista praticante, e não deve ter sobressaltos maiores – o médico avisara, pois não resistiria a outro ataque –, Alex leva-a para casa e a confina no quarto, cuidando pra que não descubra a derrocada do sistema que ajudava, como a um bêbado pesado, a manter-se em pé, e o pé é sinal de perna, que embute-se no tronco onde está plantada a cabeça. A cabeça, que não serve apenas para cabide de chapéu.
Alex, no afã de poupar a mãe – seu pai fugira para o outro lado muitos anos antes, onde tornara-se um bem sucedido médico; ela, com medo, não cumprira o combinado, ficou, entregando-se mais e mais à causa, compensação evidente –, sabem como são os filhos, a exemplo de Sebastien, providencia os amigos e até paga uns meninos, ex-alunos da doente, para que a visitem e cantem as canções antigas. Diante das dificuldades materiais, Alex ainda é mais minucioso e determinado do que Sebastien, chegando a produzir, com a ajuda de um colega, noticiários no padrão socialista, que gravava em vídeo e passava para a mãe, satisfeita nos travesseiros. Porque há uma diferença crucial entre os dois gestos filiais: Sebastien tece sua teia com notas altas (lembro daquelas cortinas de papel de cigarro que os menos aquinhoados faziam aqui em Alegrete, emendando-os e colorindo, movimentando um pouco o buraco entre a sala e a cozinha exíguas), como um autômato: problema?, toma!, nenhum problema, as feições de pedra, um príncipe das hordas bárbaras. Já Alex desdobra-se, puro amor. A religiosa ensina a Sebastien: “Diga que o ama, toque nele”. Nada teria a ensinar a Alex, vejam, a solidariedade espontânea, os dois barbudos, Cristo e Marx, no mesmo barco: mas não adianta, a gente vive, pensa, se emociona e este Caronte filho-duma-puta sempre vem, nas horas mais impróprias.
Aquele Lênin de ferro, amputado de seu pedestal, voando de helicóptero sobre Berlim, bela imagem, grandiosa – como os templos comunistas, a Praça Vermelha, o muro –, grandiosa e terrível ao mesmo tempo, encontra paralelo em uma seqüência de Invasões Bárbaras: quando Sebastien, sem tempo para bobagens, tem que voltar a seu computador, suas transações interespaciais, empresta o apartamento de Rémy para a viciada, o apartamento e a biblioteca – de Borges; daquele mosteiro medieval de Eco, que guardava a Comédia aristotélica; de todos nós, perdedores –, e ela gosta, finalmente alguém no mundo cínico de Arcand tem olhos para os livros, olhos interessados, prometendo-nos, o canadense, que dali, qual Fênix, etc... Pela heroína, salva-se Rémy das últimas e horríveis dores, e salva-nos, a heroína, a cultura preservada, revivescendo, talvez, dos restolhos humanos, champignon legítimo. Françoise Hardy (sonho erótico do velho professor) canta, enquanto o pano cai: “Muitos dos meus amigos vieram das nuvens / Com sol e chuva como bagagem. / Fizeram a estação da amizade sincera, / A mais bela das quatro estações da Terra. / (...) Se me resta um amigo que realmente me compreenda, / Me esquecerei das lágrimas e penas. / Então, talvez, eu vá até você / Aquecer meu coração com sua chama”.
Camaradas! Amigos, irmãos, camaradas! Guardem o Lênin cindido! Numa caverna que seja, o fogo sempre aceso e o filminho na concha das rochas rudimentares.

Nicole
 

Apaixonei-me perdidamente por Nicole Kidman.
Sofro feito bicho.
Perdi a fome; passo em cima da cama, com a TV ligada num canal sem recepção, só de ruídos e imagem P&B granulada; vou aos pés no penico; se obrigam-me a sair, ir ao médico, ao banco... vou aos trambolhões, como pau de enchente, amparando-me em cada dejeto um pouco mais sólido das sarjetas, gelatinoso, flácido, vil; calado, mudo irredutível, surdo; não conheço ninguém dos que me acenam, vou e volto; nem banho tomo, não sinto vontade; minha vida perdeu o sentido, como daquela vez, dez, onze anos, quando quis casar de papel passado com Liz Taylor (a de Gata em Teto de Zinco Quente), e meus pais, terminantemente, não deixaram. Só que, com Nicole, a coisa é mais séria, meu coração já não agüenta certos repuxos.
Em Dogville, Lars von Trier, faz gato e sapato dela, um horror. Dá-lhe, ao menos, a chance final de cobrar-se de seus algozes, e Nicole o faz, exemplar e crudelissimamente, filha de Gengis Caan, cada vez mais inverossímil (como o Cauby, viram a roupa, a maquiagem, a peruca do Cauby? Só falta ele sair cantando “Conceição, eu me lembro muito bem” pela rua que a carrocinha pega, ah, pega). Mas, de vingança, foi pouco. Imaginem que Nicole tinha de transitar em um cenário que não era mais do que uma planta baixa de rua, com suas casas, passeios, cachorro, jardim, desenhados no chão; casas sem paredes, sem portas, que os atores abriam com mímicas, como nessas peças-cabeça de alto orçamento, ingresso caríssimo, que todos aplaudem de pé no final, loucos pra irem pra casa, ligar o lençol elétrico (e morrer! nunca mais! morrer!), ou nos circos de toldos rotos – uma porta interna, daquelas ocas, que um soco fura fácil, não sai por menos de 50 reais, já imaginaram uma cobertura nova? Mas, ao menos, os palhaços são dignos, maltrapilhos, defasados, palhaços.
Li em algum lugar um bate-papo entre von Trier e Paul Thomas Anderson (de Magnólia). Anderson afirma amar os atores, Trier muito ao contrário. Mas – um mais para o extenso rol –, é nítido no que diz, também apaixonou-se por Nicole. Queixa-se que anda “amortecido” à espera de que ela ache um lugar em sua agenda para rodar os outros dois filmes da trilogia que começa com Dogville; chama-a de “estrela maior que a vida”; está enlouquecido por ela, vê-se. Mas, depois que deixou Tom Cruise (coitado, esforça-se em O último samurai, mas falta-lhe Nicole), que a tolhia, a ensombrecia, cioso de preservar-se como o nº 1 do casal, vaidoso, o pitoco, nossa Vênus só faz o que quer, e só quer fazer o que é bom, e o faz muito bem, cada vez melhor. Cresceu e está “maior que a vida”, em certo sentido, naquilo que a tela tem de gigantesco; que a câmera tem de imiscuir-se tão profundamente no banal que é a vida neste mundo das cadeiras enfileiradas, das nucas escuras recortando a reles realidade contra o milagre iluminado da imagem em movimento, abrindo grandes closes, desnudando-nos pelos poros hiperbólicos, pelas nuances de lábios, pelos brilhos e opacidades do olhar no écran, transformando-nos, pela empatia – porque Nicole, na tela, é uma pessoa como nós, não a deusa –, em homens profundamente infelizes, como Tom e Lars ultimamente, que, como nós, imaginaram um dia que a tinham ao alcance de suas mãos, de suas vontades, mas era tudo cinema.
Acabo de assistir Revelações, de Robert Benton, com Nicole, Anthony Hopkins, Ed Harris e Gary Sinise, excelente elenco, que cito apenas para destacar o quanto pode esta mulher. Faz uma sub-empregada, bicos aqui e ali, para, ocupando-se, não pensar, fugir das tragédias passadas, abusos paternos, perda dos filhos num incêndio, marido ex-combatente no Vietnã (Harris) – imensa chaga americana, mas eles querem mais –, tentando abstrair-se de sua história pessoal inventando outra, escorada em vícios, dissoluções – história in absentia, como diria Don Bagayo y Balurdo. Conhece um velho professor acusado de racismo (Hopkins), viúvo, impulsivo como o boxeador que foi nos tempos de escola, suficientemente forte (em aliança com os clarins cavalarianos do Viagra) para lutar por seu “último amor” – contra a sociedade, claro, mas em causa própria, que, seja qual for, senão a mais nobre, é a mais justa, como um terno feito sob medida, um terno de gala, porque Nicole vale.
Uma cena muito bonita – ao menos para nós, entrados na terceira idade – acontece quando o professor conversa com o amigo escritor (Sinise) e toca no rádio Cheek to Cheek. Ele começa a dançar, Fred Astaire em O Picolino, e convida o amigo, Ginger Rogers, “Não estou dando em cima de você, vamos, vai te fazer bem”, e dançam, dois homens, rindo, divertindo-se, só porque, de fato, é bom, faz bem soltar-se sempre que o impulso vital mandar, “vamos!”. Pena que só nós, na terceira idade, sabemos que o alegado “senso do ridículo” é esfarrapada desculpa de homens ainda frescos, inseguros quanto ao limiar entre o bom senso e a redutora auto-censura. Cena bonita. Se há outras, mais do que essa? Há. Todas as que envolvem Nicole. Muito melhor do que von Trier, Robert Benton soube captar a beleza integral da mulher, sempre atrás do cigarro, cabisbaixa, com os caracóis no rosto, tudo ali, nas tomadas fechadas, o rubor genuíno, a agressividade animal (Trier diz dela: “desumana atriz”, de tão humana), seu nervoso fremir na jaula do corpo. “É que von Trier não queria isso”, ouço de alguém, como se o pedante dinamarquês tivesse querer em se tratando de Nicole.
Então, que estou apaixonado.
Don Bagayo acha normal, “Mas, e a minha mulher?”, “Ora, não são paixões excludentes, a vida é curta”.
Será? Não será?
Ele coloca um antigo vinil na vitrola, identifico os acordes e vem-me Astaire, Cheek to Cheek, rítmico e elegante roçar-me os ouvidos. Don Bagayo abre os braços, “Vamos!” E vou, nada tenho a perder, a morte é certa.

Gauche
 

Gosto muito de Sam Shepard, entre outras coisas porque é marido da maravilhosa Jessica Lange (de Frances; Um sonho, uma lenda; Tootsie; O destino bate à sua porta; King-Kong – lembram? Belíssima sereia nas manoplas da fera, completamente apaixonada por aquele bibelô indecifrável). Mas, além disso, Shepard é também um grande ator (O viajante) e um grande, grandissíssimo, escritor. Li em algum lugar que é o maior dramaturgo americano desde O’Neill, o que não é pouco. Só conheço uma peça sua, Loucos de amor, que dilacera quem a lê (eis-me, em postas), tal o poder da palavra de Shepard e sua meticulosa e explosiva construção do drama. Num palco, deve ser algo.
Tudo que encontro dele, compro. Atualmente estou lendo os contos de Cruzando o Paraíso. A mesma prosa limpa e os mesmos personagens secos. A região preferida: o deserto, o sul árido, o meio-oeste antigo. Shepard trata de loosers, os perdedores em uma nação que idolatra o sucesso. Seus loosers têm sonhos que sabem irrealizáveis, ou então, o que dá no mesmo, têm sonhos que, realizados, nada resolvem. Porque ele sabe, como nós sabemos, que uma vez conhecendo a vida cara a cara, uma vez tendo levado um encontrão dela – opa! companheira! –, o que era verde, seca, racha. E a água de refrescar, o sol escalda. O rosto de Shepard, vincado, os olhos tristes que tem, a voz saindo difícil pela voçoroca entre os lábios, vinda do subterrâneo da alma, emociona-me. Viram Paris-Texas (Win Wenders)? Existe filme mais dilacerante e vívido, tanta a miséria, tanta a falta de soluções, tanto o deserto e aquele homem que caminha só na imensidão inóspita atrás de seu passado? Paris-Texas é o meu filme dentre tantos, e o roteiro é de Sam Shepard.
Melanie Griffith me traz a mesma sensação de Shepard e seus personagens. Filha de Tippi Hedren (a bonita de Os pássaros, de Hitchcock), como costuma acontecer quando os pais famosos dedicam-se mais à carreira do que à família, muito jovem já pintava e bordava, envolvendo-se com álcool e drogas. Isso marca uma criatura, e não só no íntimo que está na cara, mas na cara que expõe o íntimo; nos vincos rugosos, nos olhos tristes. Melanie, ainda jovem, já trazia scarfaces de suas escolhas. Saibam que a amo. E, por falar nisso: o que o Banderas tem mais do que eu? Também sou latino, moreno (vocês não sabem do que uma tintura é capaz), forte (com um novo estilo de distribuição muscular, privilegiando o chacra da barriga) e sou até capaz de dizer “Barcelona” com a língua enrolando no céu da boca no “ce”, cuspir se for preciso, babar...
Falo de Melanie porque vi esses dias Eternamente Lulu (de John Kaye), com a própria e mais Patrick Swayze e Penelope Ann Miller. Lulu, parece-me, à distância, é como vestir uma segunda pele para Melanie. Viciada, louca, internada em uma instituição, foge e convida seu antigo namorado para visitar o filho de ambos, que o pai nem sabia existir. E saem, atravessando o deserto (o deserto!), atrás do passado; do que nos pode trazer de oxigênio o passado, de outra maneira perdido nas fímbrias da eternidade: um filho. Não em fotos, mas vivo, falando, caminhando (as duas formas mais explícitas de humanidade: a palavra articulada, o pensamento, e, alvíssaras para quem o tem, um caminho à frente, um objetivo, uma razão de viver).
Em Frances, Jessica Lange fazia Frances Farmer, atriz dos anos 40 que, enlouquecida, foi confinada a uma instituição (como a de Lulu). Roubaram-lhe o Oscar, então. Jessica e Melanie são especialistas em papéis de quem virou “gauche na vida”, como escreveu Drummond. Mas completamente “gauche”, a ponto de tentar o suicídio – umas 30 vezes, no caso de Lulu; várias quanto a Frances, até que conseguiu. Pensei em escrever “até que foi bem sucedida”, mas travei a pena: o que poderiam pensar os jovens que me lêem (e os há). Mas Lulu não consegue e o filme caminha para um final apaziguador – tanto o sofrimento.
Dentro do filme – e isso também constrói a teia deste texto como construiu em mim a emoção – há um outro filme, The Hustler, que os antigos namorados (Melanie e Patrick) viram incontáveis vezes e sabiam os diálogos de cor. O “nosso filme”, diz Lulu, como costumamos dizer “a nossa música” ou mesmo – por que não?, tudo é Hollywood – “o nosso filme”. Os protagonistas de The Hustler são Joane Woodward e Paul Newmann. Vejam a teia fechando-se: Paul, com os falecidos Mastroiani, Lemmon e Fonda, é um dos meus atores prediletos (com quem Melanie, ninfetinha, iniciou-se no cinema em A piscina mortal). Quando jovem, antes de querer ser Jorge Luís Borges, eu quis ser Paul Newmann. Nunca pude. Mas continuo caminhando, meio que ziguezagueando pelo deserto, só pedindo aos deuses que não me façam nunca antes do tempo, ou cego, ou surdo, ou completa e irreversivelmente gauche.

Índios  

O guerreiro sioux, ao alvorecer do dia em que enfrentaria batalha, deixava sua tenda nas pradarias, olhava para a paisagem, o céu, e, “Hoje é um bom dia para morrer”, dizia. (Se estivesse chovendo, talvez dissesse: “Hoje é um bom dia para não sair da tenda, dormir o tempo inteiro, procriar, por que não!?”) Muitos filmes recriaram a cena, tornando-a épica. Provavelmente em Pequeno Grande homem, o “filme de índio” da minha vida, direção de Arthur Penn e atuação antológica de Dustin Hoffman, ela está lá, interpretada por Cavalo Louco ou Touro Sentado. Mas não lembro. Lembro que o filme é magnífico e desmitificador da história americana e de gente como Custer, o “cabelos amarelos”, um trucidador egocêntrico. Vejam o filme, aproveitem, e leiam Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown, que conta toda a tomada do oeste americano pelos brancos, esmagando os “peles-vermelhas” e sua cultura (e não é ficção, mas História, e traz ainda belas fotos e mapas). Há personagens interessantíssimos no passado dos EUA, como o general Sheridan, que proferiu a frase que se transformou num aforismo americano: “O único índio bom é um índio morto”. Para Sheridan, escreve Dee Brown, “qualquer índio que resistisse quando atacado era um selvagem”.
Vi um filme neste fim de semana, no Brasil titulado como A árvore dos sonhos, mas, no original, The war, isto é, A guerra, direção de Jon Avnet, com Kevin Costner como um ex-combatente do Vietnã que não consegue superar os traumas das selvas tropicais e, quando volta para casa, encontra os filhos Stu (Elijah Wood, ator excepcional) e Lídia (Lexi Randall, ótima) em “guerra” também, com os Lipnickis, um bando que vive em um ferro-velho contra o qual brigam por um “forte” que construíram em uma árvore (frondosa e de galhada aberta como se vê muito em filmes ambientados no sul dos EUA – no caso, Juliette, cidadezinha do Mississipi).
O traumatizado Stephen (Costner) não consegue fixar-se em emprego nenhum por conta de seus “pesadelos” com o Vietnã. Mas é um homem cheio de sonhos e esperançoso de um futuro de paz. Depois de um de seus gestos, incompreendido pelos filhos, diz: “A guerra nos consumiu e nos fez todos loucos. Fico tentando o tempo todo perdoar a mim e ao meu país. Não é da guerra, mas do amor que vem o valor de um país”. Stephen é mais um dos milhares de americanos mutilados, física ou mentalmente, que ainda vagam pelos EUA com suas feridas abertas.
O filme é narrado por Lídia, que conta a história em seu trabalho final do curso de verão, e que encerra assim: “Aprendi neste verão que não importa quanto a gente pense que entende a guerra; a guerra não entende a gente. É como uma grande máquina que ninguém sabe como funciona. Uma vez fora de controle, destrói os ideais pelos quais lutava e as coisas boas que se esquece que se tinha”.
Em 1866, em “audiência” com os chefes sioux, cheyenne e arapaho, no Forte Larned (atual estado do Kansas), o general Hancock dizia: “Soube que muitos índios querem combater. Muito bem. Estamos aqui e viemos preparados para a guerra. Se quiserem a paz, sabem as condições. Se quiserem a guerra, preparem-se para as conseqüências. (...) O homem branco está vindo para cá tão depressa que nada pode detê-lo. Vindo do Leste e do Oeste, como uma pradaria em fogo sob um vento forte. Nada pode pará-lo. Isso acontece porque os brancos são um povo numeroso e estão se espalhando. Precisam de espaço e não podem evitar isso. (...) Não devem deixar seus jovens detê-los; devem manter seus homens longe das estradas... Não tenho mais nada a dizer. Esperarei o fim de seu Conselho para ver se querem guerra ou paz” (Enterrem..., p.116).
O povo americano sempre resolveu tudo assim, na truculência; é um povo “nascido para matar” (como no filme de Stanley Kubrick). Vejam Duelo de Titãs, já na pilha dos esquecidos nas locadoras, com Denzel Washington, e tenham uma mostra de como são treinados os times do futebol deles. Bush é um texano – como o personagem de John Wayne em Álamo, expulsando os mexicanos e garantindo o Texas para os EUA. Para eles, todos os demais povos são índios, os quais devem-lhes subserviência. Se o mundo quer paz, repetindo o general Hancock, “sabe as condições”. O Bush ainda brinca de bandido e mocinho e gostaria, no íntimo, de transformar-nos a todos os não americanos em “índios bons”.

Lubrificantes  

A Baby (Consuelo) do Brasil esclarece que conversa com Deus e que “Ele é lindo, usa barba e fala todas as línguas”. Ainda bem, porque facilita, sabe?! Já pensaram um afegão precisar de intérprete para pedir por suas urgências, ou um brasileiro? E que língua teria de falar o intérprete? Qual ou quais as línguas seriam as chanceladas por Deus? Tenho a impressão de que, por via das dúvidas, aprender inglês seria boa cautela. Mas se a Baby diz, está dito, e podemos continuar com nossas orações que Ele entende. O que deve preocupar os brasileiros é se Ele está nos ouvindo. Com tanta interferência dessas comunicações modernas, talvez nossos pedidos venham caindo todos na caixa de mensagens do Bush. E o Bush é bucha!
Não tenho nada contra os americanos em geral, no entanto, afora o fato de serem, na média, uns imbecis egocêntricos e mal educados. Em termos artísticos, literários, aí são bons, quando não são péssimos. Achei um fiasco Gladiador ter ganho o Oscar de melhor filme anos atrás e Russel Crowe o de melhor ator. Lembrei então o que as mulheres pareciam não ver: a total inadequação física de Crowe para o papel. Alguns dos meus cinco ou dez leitores torceram o nariz. Será que essa moda sertaneja de usar óculos escuros à noite pegou também no escuro do cinema? Pois Pauline Kael, a melhor crítica da “sétima arte” dos EUA, recentemente falecida, concorda comigo (e, vejam, que pena para ela, morreu sem saber): “Fiquei chocada em ver como Gladiador é tecnicamente ruim. Tem uma péssima edição e é absurda a escolha daquele ator – qual é seu nome? – como gladiador. Você olha para ele flexionando os músculos e tem vontade de rir. Parece um dos três patetas.”
Alguns filmes, pela publicidade massiva, ou pelo glamour dos protagonistas, fazem um sucesso bárbaro – nos dois sentidos; alguns sugerem a barbárie de quem gosta daquilo. E outros, de baixo orçamento mas alta qualidade, passam despercebidos. Acho que sempre foi assim. Deus deve ter contado para a Baby que, definitivamente, não era um superstar há dois mil anos. E hoje, hein!? Só o padre Marcelo Rossi e o bispo Edir Macedo quantos milhões já faturaram em Seu Nome? – e apenas como intermediários, atravessadores. Voltando aos filmes, tenho visto alguns desses que ninguém percebe nas prateleiras e são ótimos. Dois picaretas e um bebê é um deles.
Não liguem para o título, que tenta ser engraçado, embarcando na linha de Três solteirões e um bebê e mais uma penca de filmes com a palavra mágica “bebê” no meio de quaisquer outras. O título original é bem diferente, mas como não entendo inglês e esqueci de apontá-lo (porque nada me disse, embora contenha a palavra “nobody’s” e isso cheira-me a algo profundo que talvez a Baby pudesse esclarecer). Conta a história de dois órfãos criados em instituições de caridade e que transformam-se em golpistas (alguma semelhança com os egressos da Febem?), só que atrapalhadíssimos como só eles mesmos. Gary Oldman está impagável como o malandro mais velho e Skeet Ulrich, grata revelação, faz um simplório de bom coração cuja inocência transparece nos menores gestos. O elenco traz ainda a boníssima Mary Steenburgen, Radha Mitchel (bonita demais) e Mathew Modine em uma ponta. A direção é de David Seltzer, um jovem futuroso.
Um outro filme esquecido nas prateleiras e muito bom é A chave do sucesso, de John Swanbeck (muito prazer!), com Kevin Spacey e Danny De Vito (ambos excelentes). A história gira em torno de dois vendedores veteranos (os próprios), que jogam todas as fichas em uma convenção onde pretendem caçar um grande peixão, cheio de dólares. Com eles, um jovem estreante profundamente religioso, que, sem querer, acaba conversando com o peixão, mas não procura vender seu produto e sim convencê-lo a respeito de Deus e seus prodígios. Quando os outros sabem disso, ficam loucos. O personagem de Spacey esbraveja e sai de cena, deixando o de Danny De Vito, um homem mais velho, recém divorciado e pensando em abandonar tudo, com o rapazote, quando travam, aproximadamente, o seguinte diálogo:
– Você não falou com ele sobre o negócio?
– Falar em Deus é mais importante, é mais humano do que falar em lubrificantes.
– Filho. Ser humano é falar em família, perguntar pelos filhos. Se você conduz a palavra para Deus, você o está vendendo, o está vendendo como lubrificantes ou o que seja.
– Desculpe, mas discordo.
– Não é esse o problema. É que você não encontrou nada pra se arrepender do que você fez. Isso é falta de caráter. Sabe o que é, filho. Acredito em sua sinceridade, mas você tem algo dentro de si que acha que não, que não está certo disso e quer, precisa provar essa sinceridade. Quando você for mais velho e tiver caráter (com as perdas, os problemas, os cansaços...), você será sincero naturalmente, sem que isso signifique provar algo, para si ou para outrem...
O diálogo fez-me lembrar A morte do caixeiro viajante, peça de Arthur Miller. E também o quanto de falácia ignorante, de vazio engalanado incendeia a pregação desses neo-religiosos. Bem que eles mereceriam emprestar seu protetor labial para o personagem de Oldmann no Dois picaretas... (que cria-lhe outra utilidade – conhecem o disco do Tom Zé, aquele da capa-ânus?) e usá-lo de volta. Só para que provassem o outro lado da questão.

A imagem avassaladora

O Jô entrevistou o Sérgio Brito, que estava encenando uma versão de sua autoria de Romeu e Julieta, adaptada para os tempos atuais. Mas falaram mesmo de cinema, e ambos confessaram sua predileção pelo cinema em preto-e-branco e mudo – do que demonstraram grande conhecimento.
Escrevi que eles “confessaram” sua predileção porque é quase um crime, no terceiro milênio, gostar de tais coisas. Ainda mais para pessoas públicas de certa idade, que precisam estar sempre alardeando seu espírito jovem, a demonstrar o quanto estão inseridas no esquema do show business. A demanda é por carne fresca. Se não cozinhar na primeira fervura, ao menos que tenha espírito fresco. O Jô, com suas toneladas, tentou por vários tombos ser motoqueiro. Só desistiu depois de próteses ósseas e limitação de movimentos.
Pois eu também prefiro o cinema antigo, a fotografia em preto-e-branco, com toda a riqueza de seus meios-tons. Acho que o cinema atual cada vez mais se parece com a realidade, seja na interpretação naturalista dos atores, seja nas locações com preponderância de externas urbanas, seja pelos perfeitos processos de cor, seja pelo ritmo acelerado de montagem, seja pela tecnologia utilizada nos “efeitos especiais”, seja pela quase abolição dos grandes temas (substituídos pela própria tecnologia, que tornou-se meio e fim da indústria cinematográfica, fonte de riqueza para os estúdios e de prazer montanha-russa para o público). Há exceções, tratadas como excrescências.
A arte deve ser uns olhos diferentes dos nossos, uns olhos transformadores, demiúrgicos. O preto-e-branco mudo me parece a perfeita mediação artística entre o mundo colorido-sonoro e sua representação cinematográfica. (É óbvio que há arte em filmes de agora, mas não incomodem, existem inúmeros textos que tratam disso, inclusive meus.) O trem que ameaçava invadir a sala das primeiras sessões de cinema, causando pânico entre os espectadores era tanto mais perigoso quanto irreal. O público não tinha medo do trem em si, acostumado a gambeteá-lo nas passagens de nível, mas da imagem avassaladora, daquela desatinada fantasmagoria brotando do escuro imprevisível e investindo contra os sentidos, o instinto e a compreensão.
Os filmes antigos enfrentavam questões essenciais (ou assim nos parece, a nós, imersos no descartável hoje), grandes temas. Daí decorre muito de sua majestade, sua plástica, sua poesia, sua eternidade. A bem da verdade, prescindiam de falas. Observem como as legendas dos filmes do Carlitos não fazem falta para o entendimento do que se passa na tela. Comparo as legendas do cinema mudo ao papel do côro nas antigas tragédias gregas: servem como apoio, reforço à ação (mais ou menos como um animador de auditório tipo Fausto Silva ou Sílvio Santos, ou como um narrador de futebol na TV).
Os filmes eram filmes-sinfonias em que as tomadas-notas, as cenas-movimentos, compunham loquazes aquarelas. A Última Gargalhada (1924, F. W. Murnau) é um desses clássicos maravilhosos. Conta de um porteiro de hotel que vale pelo uniforme que usa. Ao perder o posto, perde também o respeito dos seus pares e a auto-estima. A interpretação do ator é sublime e consegue passar toda nossa indigência essencial: precisamos do reconhecimento do outro para viver e, antes, nossos víveres são as aparências.

Matilde

O Pirata Leães, além de ótimo desenhista (autor da minha caricatura tantas vezes usada neste domínio, atualmente morando em Santa Maria), sabe tudo sobre música e cinema. Foi ele quem pela primeira vez indicou-me O marido da cabelereira, com direção de Patrice Leconte e atuações impecáveis de Jean Rochefort e Anna Galiena. O Lalá (Laerte Dorneles) me deu de presente o vídeo certa vez, mas foi antes de ter feito o transplante de córnea e ele não viu que a fita estava tomada pelo mofo. Afinal, em Porto Alegre, na maravilhosa TV 3, o encontrei. Em uma palavra: adorável.
Jean Rochefort é aquele ator francês de Esse mundo é dos chatos. Tenho uma simpatia por ele que vai além de sua figura, aliás, tipicamente francesa, o que já seria motivo para o gostar – é que me lembra, não sei bem a troco, o grande Jaques Tati (Meu tio, As férias de M. Hulot, Tráfego louco...), a quem meu pai adorava e me levou a conhecer em uma época em que as coisas pareciam estar todas em seu lugar na vida da gente e aquele distraído francês era um divertimento seguro. Hoje, nunca se sabe com segurança o que se vai ver nos filmes, tal a discrepância entre o marketing e o produto – e, hoje, que estamos órfãos de posturas éticas na indústria cultural, me sinto duplamente órfão, inseguro. Mas não quanto a Leconte e Roquefort.
O filme, singelíssimo, como são costumeiramente os franceses, intimista, humano, amoroso, conta de um menino que, apaixonado pela cabeleireira, nos seus 12 anos, decidiu que queria ser, quando adulto, marido de uma. Não engenheiro, médico, militar, mas marido de cabeleireira. Encontra-a em Mathilde (Anna Galiena, e toda sua atração de fêmea de verdade, nada daquelas coisas esticadas e envernizadas que o cinema americano produz aos quilos). Casam-se e vivem um para o outro, segundo a capa do vídeo, e, de fato, “encastelados no salão Isidore, reino de sua deusa”. Até que, um dia qualquer, chove torrencialmente, ela se aproxima de Antoine (o personagem de Roquefort), tira as calcinhas (de algodão, creio, perfumadas, com certeza) e empoleira-se no colo de seu amado. Então, após o gozo, como que um véu de tristeza tolda-lhe o rosto e ela sai para a chuva para “comprar iogurte”.
Não volta mais, joga-se nas “águas turbulentas” do rio e morre. Mas deixara uma carta onde explicava ao pobre Antoine que ia embora “antes que você vá”; “antes de me sentir infeliz”; “antes que você deixe de me desejar”; “para que você nunca me esqueça”, eu (ela), “que sempre amei você e só amei você” (ele).
Na carta, Mathilde diz também que vai embora “levando a lembrança dos mais belos dias de minha vida, aqueles que você me deu”. E isso, enquanto via o filme, reportou-me ao Faustão de um certo domingo, quando Perry Salles contou do dia em que Vera Fischer foi embora, dizendo-lhe algo como “dei-lhe os melhores anos de minha vida”. A tremenda mudança de enfoque com praticamente as mesmas palavras, eis a medida de que os tempos são outros. Querem ver: Antoine, com 12 anos, ao ver os seios da cabeleireira, “nunca mais deixou de amar apaixonadamente os seios das mulheres”. Mas seios, seios, não bolsas de silicone; seios que, com o tempo – como a pele, o pênis – humanamente desandam. E é por isso que nós gaúchos, cultivamos o hábito do chimarrão, diariamente sovando o rijo “seio moreno” e sorvendo a “seiva vital”.
Por falar nisso, acabava de ganhar de presente, do amigo Osvaldo Pereira, uma cuia de porongo grosso, dos matos do Itapororó, que, além do mais, trazia uma racha labiosa ao comprido. Cuê pucha! Dava-me a Mathilde inteira!


José Carlos Fernández Queiroga © 2004 - www.lapandorga.com.br
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